sábado, 19 de junho de 2010

Mulheres vestidas de branco (por Lélia Almeida)

Outro dia vi a Marília Gabriela entrevistando o Jô Soares. No meio da entrevista ele comentou sobre uma medalhinha que ela usava num cordão, no pescoço. Era de uma santa, não lembro qual. Falaram da santa, dos milagres e o Jô falou que a história da aparição das santas, que são todas uma espécie de desdobramento da Virgem Maria, e de tudo o que o mito mariano encerra, sempre se dá, na história do mundo, em momentos limites. De abuso. Ele explicou que quando a racionalidade atinge as raias da loucura ou quando o caos é muito grande há uma aparição da santa, em algum lugar, como se um princípio feminino viesse ordenar o caos novamente.

Há muitos anos atrás, só para lembrar aos mais jovens, um grupo de mães argentinas, desesperadas, começou a desfilar com lenços brancos na cabeça, na Praça de Mayo, em Buenos Aires. Bordados nos lenços brancos, o nome dos filhos desaparecidos, mortos, assassinados pela ditadura argentina. Foi o movimento iniciado por elas, entre outros fatores, que deu visibilidade ao mundo sobre o que acontecia na América Latina naquele momento.

O filme do Juan José Campanella, que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro este ano, El secreto de tus ojos, tem como pano de fundo uma história que os argentinos, assim como os alemães e outros, a cada geração, têm que revisitar, num movimento de lavar a roupa suja, e que parece ter um significado muito simples: com os mortos não se brinca. Eles voltam. Eles precisam ser enterrados com dignidade. Eles clamam por justiça, a que for.

As Mães da Praça de Mayo me lembram Antígona, que desafiou as leis dos homens para enterrar os seus mortos. E elas me lembram as mães de Angola, as Mulheres da Paz do Nepal, as de La Ruta, as de Guernica, as mexicanas de Tlatelolco, as Mães do Rio, as do Espírito Santo, as mães de Acari, as de Vigário Geral, e as Mulheres da Paz. Porque quando vemos mulheres de branco lutando por paz e denunciando que os seus filhos foram mortos, gritando por justiça, temos um entendimento imediato do fenômeno. Estamos no registro de um arquétipo, de uma forma de conhecer e de saber que ultrapassa qualquer racionalidade. Estamos no território do mito, do símbolo, e uma verdade então nos é revelada. Uma convicção: isto não pode ser. Isto não.

As mães de Luziânia têm vindo sistematicamente a Brasília para participar de audiências no Senado, na Câmara, clamam por uma justiça que não virá, e pedem, intimamente, ao Estado o que ele não tem como lhes devolver: elas querem os seus filhos de volta. Meninos pobres, negros e pardos que vivem nas regiões metropolitanas mais pobres do país e que morrem abatidos como bichos. Nesta noite, me persigno junto com todas as mães do mundo, e oro. Mas ninguém nos ouve. E somente nós, as mães do mundo, ouvimos um poderoso murmúrio subterrâneo que nos desperta e nos irmana.


http://www.sul21.com.br/index.php/colunistas/Llia-Almeida/446

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