O Parto, um portal iniciático.
Tive aulas de parto natural, assisti a filmes e li alguns livros para me preparar para o acontecimento do nascimento de minha primeira filha, Isabella. O Pai dela e eu fazíamos visitas regulares à ginecologista que concordara em fazer um parto normal. Acreditávamos na força e na sabedoria da natureza que junto com as influências da lua, a maturidade da criança, a eficácia das contrações e a dilatação, traria ao este mundo um ser por nós gerado. À medida que a data prevista para o nascimento dela se aproximava eu aguardava o trabalho de parto como se estivesse partindo para uma expedição. Aos 29 anos já não era mais uma jovem. No fundo, eu tinha algumas preocupações, mas as mantinha sob controle: “o bebê seria normal?”, “eu sentiria muita dor durante o parto?”. Pensava que poderia haver complicações e estas questões estavam fora do meu alcance. Muitas de nós mulheres tem muito medo daquilo que sabemos – de que a terrível dor e a morte são possíveis em um parto.
As contrações começaram ao anoitecer de uma sexta-feira de primavera e ficavam cada vez mais fortes e regulares. As primeiras horas não foram ruins e era fácil de respirar como aprendera nas aulas de “parto sem dor”, o que era animador. Por isso, senti como se fosse uma aventura, quando chegou a hora de ir para o hospital. A nossa obstetra fazia parte do grupo que acreditava que o pai deveria assistir ao parto e nessas condições, não passei por isso sozinha.
No entanto, esse território não se apresentou tão familiar assim. Eu descobri que havia de passar por vários portais, e em cada um deles me desapossar de algo que representava minha identidade. O primeiro portal era o processo de admissão na maternidade, onde renunciei a meus pertences e a minha identificação. No portal seguinte, me despi e recebi uma bata larga para vestir, sem nada por baixo. No terceiro portal entrei na sala de pré-parto e me deitei de costas para os exames de rotina para a verificação da rapidez e da extensão da dilatação do colo do útero e da fase de trabalho de parto que me encontrava. À medida que as dores aumentavam eu ia perdendo controle da situação. Sentia-me como se estivesse em um mundo subterrâneo, em um estado alterado de consciência. Sentia ondas de dor que subiam e descia cada qual se tornando mais longa e intensa, com intervalos cada vez menores de alívio entre uma e outra. Foi um esforço físico extenuante, difícil e sofrido, e os intervalos foram preenchidos por um medo antecipado. Fui conduzida então para outro portal até a sala de parto.
No momento imediatamente anterior ao parto propriamente dito, fui submetida a uma anestesia que me abrandava a dor, mas conservava a sensação de tato, quando as dores são as mais longas e intensas de todo o processo. Eu me sentia fraquejar, pois assim como todas as mães, quando o bebê atravessa o colo do útero em direção ao estreito canal do nascimento, passando pelo arco pubiano para emergir no mundo é a prova que exige mais do corpo do que a mente considera possível. Embora a força de vontade faça o processo seguir, os últimos estertores do trabalho de parto estão além da vontade e da escolha. Existe somente a capitulação do que está acontecendo dentro de você e a você. O trabalho culmina com o nascimento de um bebê, ou como está registrado em algum ponto do nosso inconsciente desde sempre, na morte da mãe. Este é o momento em que o bebê atravessa literalmente um portal que o conduz a uma nova fase, quando o risco de danos ao bebê e à mãe chega ao ponto máximo. Esse é o arquétipo de todas as mudanças da vida: depois que atravessamos a passagem, nada permanece como antes.
E assim foi. Com um derradeiro empurrão, Isabella chegou ao mundo através de min. Naquele momento, eu mesma fui o portal. Logo depois ouvi um choro e fui informada de que era uma menina e que estava bem. Ela foi alocada momentaneamente em meus braços, acordando imediatamente o carinho maternal e um assombro pelo fato de que esse pequenino ser ter se desenvolvido dentro de min.
Durante as dores de parto muita coisa sucedeu. Muita coisa me foi revelada de uma maneira incomum sem palavras ou ponderação. Era como se eu estivesse descendo em direção a escuridão. O “eu” que executava tarefas no mundo não estava na sala de pré-parto ou de parto. Isso para mim foi uma intensa iniciação em que vivenciei uma profunda consangüinidade com todas as mulheres de toda a história que passaram por essa transformação. Nada me distinguia de uma mulher de nenhum lugar que tivesse dado à luz a um bebê.
A prova do trabalho de parto e do próprio parto me aliciou para o movimento do feminino. A afinidade com as mulheres e a profunda irmandade começou naquela época. Adquiri com o tempo um conhecimento místico de unicidade com todas as mulheres. Minha individualidade não significava coisa alguma, nessa experiência fui todas as mulheres, qualquer mulher, Mulher. Essa foi uma experiência intensa.
Pude perceber como na gravidez, nas dores e no parto, as mulheres de toda a parte do mundo passam por um importante ritual de passagem que não é reconhecido por nós, pela sociedade ou pelas religiões. O que é apenas decretado nos rituais masculinos de passagem - os elementos de prova, o risco da morte e a transformação, é a situação literal vivida na gravidez. O trabalho de parto é uma prova, existe um risco intrínseco de morte, a mulher é transformada. Nesse processo de iniciação, o corpo de uma mulher se altera no corpo de uma mãe, e ela da nova vida ao bebê. E isso é apenas o começo de seu compromisso. Para que a criança sobreviva, cresça e se desenvolva, a iniciada deve ser responsável pela nova vida. Mesmo que ela sozinha não seja responsável pela continuação da espécie humana, a espécie humana continua porque a cada instante uma mulher passa por essa iniciação e traz através de si uma nova vida.
A minha gravidez também me persuadiu de que nenhuma mulher deve passar por isso contra sua vontade, principalmente se a concepção ocorre devido a um estupro ou incesto – circunstancias que profanam seu corpo e sua alma.
Uma mulher grávida será transformada através da experiência vivida em seu corpo e em sua psique. Ela se entrega ao processo de gestação, das dores e do parto. O foco, entretanto recai sobre o bebê que ela carrega. Tão significativo quanto à possibilidade de um novo nascimento é quem a mulher se tornará após essa experiência.
A gravidez é como a criatividade que surge a partir de uma imersão no inconsciente.
Stella Bittencourt.
Tive aulas de parto natural, assisti a filmes e li alguns livros para me preparar para o acontecimento do nascimento de minha primeira filha, Isabella. O Pai dela e eu fazíamos visitas regulares à ginecologista que concordara em fazer um parto normal. Acreditávamos na força e na sabedoria da natureza que junto com as influências da lua, a maturidade da criança, a eficácia das contrações e a dilatação, traria ao este mundo um ser por nós gerado. À medida que a data prevista para o nascimento dela se aproximava eu aguardava o trabalho de parto como se estivesse partindo para uma expedição. Aos 29 anos já não era mais uma jovem. No fundo, eu tinha algumas preocupações, mas as mantinha sob controle: “o bebê seria normal?”, “eu sentiria muita dor durante o parto?”. Pensava que poderia haver complicações e estas questões estavam fora do meu alcance. Muitas de nós mulheres tem muito medo daquilo que sabemos – de que a terrível dor e a morte são possíveis em um parto.
As contrações começaram ao anoitecer de uma sexta-feira de primavera e ficavam cada vez mais fortes e regulares. As primeiras horas não foram ruins e era fácil de respirar como aprendera nas aulas de “parto sem dor”, o que era animador. Por isso, senti como se fosse uma aventura, quando chegou a hora de ir para o hospital. A nossa obstetra fazia parte do grupo que acreditava que o pai deveria assistir ao parto e nessas condições, não passei por isso sozinha.
No entanto, esse território não se apresentou tão familiar assim. Eu descobri que havia de passar por vários portais, e em cada um deles me desapossar de algo que representava minha identidade. O primeiro portal era o processo de admissão na maternidade, onde renunciei a meus pertences e a minha identificação. No portal seguinte, me despi e recebi uma bata larga para vestir, sem nada por baixo. No terceiro portal entrei na sala de pré-parto e me deitei de costas para os exames de rotina para a verificação da rapidez e da extensão da dilatação do colo do útero e da fase de trabalho de parto que me encontrava. À medida que as dores aumentavam eu ia perdendo controle da situação. Sentia-me como se estivesse em um mundo subterrâneo, em um estado alterado de consciência. Sentia ondas de dor que subiam e descia cada qual se tornando mais longa e intensa, com intervalos cada vez menores de alívio entre uma e outra. Foi um esforço físico extenuante, difícil e sofrido, e os intervalos foram preenchidos por um medo antecipado. Fui conduzida então para outro portal até a sala de parto.
No momento imediatamente anterior ao parto propriamente dito, fui submetida a uma anestesia que me abrandava a dor, mas conservava a sensação de tato, quando as dores são as mais longas e intensas de todo o processo. Eu me sentia fraquejar, pois assim como todas as mães, quando o bebê atravessa o colo do útero em direção ao estreito canal do nascimento, passando pelo arco pubiano para emergir no mundo é a prova que exige mais do corpo do que a mente considera possível. Embora a força de vontade faça o processo seguir, os últimos estertores do trabalho de parto estão além da vontade e da escolha. Existe somente a capitulação do que está acontecendo dentro de você e a você. O trabalho culmina com o nascimento de um bebê, ou como está registrado em algum ponto do nosso inconsciente desde sempre, na morte da mãe. Este é o momento em que o bebê atravessa literalmente um portal que o conduz a uma nova fase, quando o risco de danos ao bebê e à mãe chega ao ponto máximo. Esse é o arquétipo de todas as mudanças da vida: depois que atravessamos a passagem, nada permanece como antes.
E assim foi. Com um derradeiro empurrão, Isabella chegou ao mundo através de min. Naquele momento, eu mesma fui o portal. Logo depois ouvi um choro e fui informada de que era uma menina e que estava bem. Ela foi alocada momentaneamente em meus braços, acordando imediatamente o carinho maternal e um assombro pelo fato de que esse pequenino ser ter se desenvolvido dentro de min.
Durante as dores de parto muita coisa sucedeu. Muita coisa me foi revelada de uma maneira incomum sem palavras ou ponderação. Era como se eu estivesse descendo em direção a escuridão. O “eu” que executava tarefas no mundo não estava na sala de pré-parto ou de parto. Isso para mim foi uma intensa iniciação em que vivenciei uma profunda consangüinidade com todas as mulheres de toda a história que passaram por essa transformação. Nada me distinguia de uma mulher de nenhum lugar que tivesse dado à luz a um bebê.
A prova do trabalho de parto e do próprio parto me aliciou para o movimento do feminino. A afinidade com as mulheres e a profunda irmandade começou naquela época. Adquiri com o tempo um conhecimento místico de unicidade com todas as mulheres. Minha individualidade não significava coisa alguma, nessa experiência fui todas as mulheres, qualquer mulher, Mulher. Essa foi uma experiência intensa.
Pude perceber como na gravidez, nas dores e no parto, as mulheres de toda a parte do mundo passam por um importante ritual de passagem que não é reconhecido por nós, pela sociedade ou pelas religiões. O que é apenas decretado nos rituais masculinos de passagem - os elementos de prova, o risco da morte e a transformação, é a situação literal vivida na gravidez. O trabalho de parto é uma prova, existe um risco intrínseco de morte, a mulher é transformada. Nesse processo de iniciação, o corpo de uma mulher se altera no corpo de uma mãe, e ela da nova vida ao bebê. E isso é apenas o começo de seu compromisso. Para que a criança sobreviva, cresça e se desenvolva, a iniciada deve ser responsável pela nova vida. Mesmo que ela sozinha não seja responsável pela continuação da espécie humana, a espécie humana continua porque a cada instante uma mulher passa por essa iniciação e traz através de si uma nova vida.
A minha gravidez também me persuadiu de que nenhuma mulher deve passar por isso contra sua vontade, principalmente se a concepção ocorre devido a um estupro ou incesto – circunstancias que profanam seu corpo e sua alma.
Uma mulher grávida será transformada através da experiência vivida em seu corpo e em sua psique. Ela se entrega ao processo de gestação, das dores e do parto. O foco, entretanto recai sobre o bebê que ela carrega. Tão significativo quanto à possibilidade de um novo nascimento é quem a mulher se tornará após essa experiência.
A gravidez é como a criatividade que surge a partir de uma imersão no inconsciente.
Stella Bittencourt.
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